Diocese de Anápolis

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Tradição e Sagrada Escritura

Nas discussões que precederam de imediato o Vaticanum II estavam em disputa quatro posições (sem contar as intermediárias): 

1. Todo o depósito da fé é propriamente Tradição. Até a Sagrada Escritura deve ser incluída na Tradição (P. Grelot).

2. Propriamente só a Sagrada Escritura é suficiente (sufficientia S. Scripturae). A Tradição cumpre uma função unicamente interpretante (J. R. Geiselmann com a escolástica).

3. A Sagrada Escritura na verdade é suficiente, mas de forma relativa. A Tradição cumpre uma função não apenas interpretante, mas também casuístico-complementar (relativa sufficientia S. Scripturae – J. Beumer).

4. Existem duas fontes de Revelação, como que independentes entre si: a Sagrada Escritura e a Tradição (H. Lennerz).

Pesquisas mais recentes sobre o problema da Tradição demonstraram que nos séculos XIII e XIV os teólogos falavam da Sagrada Escritura como fonte da teologia (sacra Scriptura – theologia pura). Extraíam toda palavra salvífica da Sagrada Escritura e nela a buscavam (ex, in, a sacra Scriptura). Os escolásticos evitavam a fórmula: muitas coisas não foram escritas na Sagrada Escritura – multa non sunt scripta – e por todos os meios procuravam relacionar toda doutrina teológica com a Bíblia. A posição de muitos escolásticos nesse sentido não se distinguia muito da posição dos reformistas. Poder-se-ia escrever uma dissertação envolvente sobre o princípio Sola Scriptura (apenas a Sagrada Escritura) na escolástica. Seguindo os passos de Pseudo-Dionísio Areopagita, S. Boaventura adotou como regra da boa teologia: “Nada pode ser aceito que não tenha sido expresso por Deus na Sacrada Escritura”1. Até para as argumentações mais especulativas, os teólogos da Idade Média buscavam apoio na Palavra Divina inspirada.

O Concílio de Trento, no Decreto Sacrosancta sobre a Sagrada Escritura e a Tradição (1546), assumiu a seguinte posição:

1. Aceitou o conceito amplo de Evangelho (o Evangelho já havia sido anunciado pelos profetas no Antigo Tetamento).

2. Jesus Cristo, Filho de Deus, “anunciou primeiramente esse Evangelho pela Sua própria boca, e a seguir ordenou que Seus Apóstolos o anunciassem a toda criatura (Mt 28, 19 ss.; Mr 16, 15) como fonte de toda verdade salvífica e das normas de procedimento”. 3. Essa verdade e essas normas de procedimento “encontram-se no livros escritos que os Apóstolos receberam da boca do própria Cristo, ou eles mesmos aceitaram sob a inspiração do Espírito Santo e assim os transmitiram como que de mão em mão, até os nossos tempos”. 4. Com a mesma “piedade e respeito” é preciso aceitar e reverenciar todos os livros do Antigo e do Novo Testamento, bem como “as tradições relacionadas com a fé e a moralidade, fornecidas oralmente por Cristo ou inspiradas pelo Espírito Santo e preservadas na Igreja católica graças à sucessão ininterrupta” (BF III, 10-11).

O Concílio de Trento não fala de duas fontes da Revelação; muito ao contrário, fala de uma fonte única “de toda verdade salvífica e norma de procedimento”, fonte que é o Evangelho entendido de forma ampla. Como aconteceu então que os manuais de teologia transmitiram ao catolicismo, como doutrina tridentina, a doutrina sobre as duas fontes da Reelação, a Sagrada Escritura e a Tradição? Como explicar o fato que na teologia foi aceita a teoria do partim – partim, isto é, de que a Revelação encontra-se parcialmente na Sagrada Escritura e parcialmente na Tradição extrabíblica? Verifica-se que o culpado disso foi o famoso Melquior Cano. Ele preparou para o Concílio de Trento o projeto de um decreto com a teoria “parcialmente – parcialmente”, pronunciando-se pelas duas fontes da Revelação. Embora o Concílio não tenha aceitado a sua teoria, Cano publicou o texto incorreto do decreto conciliar2. A grande autoridade de que gozava esse eminente teólogo fez com que durante séculos fosse interpretado incorretamente o pensamento do Tridentinum, que conscientemente evitou a formulação sobre as duas fontes da Revelação.

O Concílio Vaticano II analisou essas questões com muita amplitude na Constituição dogmática sobre a Revelação Divina, no capítulo II: Da transmissão da Revelação Divina.

1. O Concílio não aponta para duas fontes da Revelação. No seu entender essa fonte é apenas uma – Deus, que se revelou através de atos e de palavras, interiormente interligados entre si. Primeiramente revelou-se em Jesus Cristo; foi também n’Ele que revelou da forma mais plena a verdade sobre a salvação do homem. O Concílio adotou a compreensão ampla do Evangelho como “fonte de toda verdade salvífica e norma moral”. Portanto o Evangelho pode também ser considerado como fonte única da Revelação. No entanto o Evangelho não deve ser identificado com os quatro Evangelhos.

2. Mais amplamente que o Tridentinum, o último concílio descreveu os caminhos pelos quais o Evangelho chega até nós: “Por isso Cristo Senhor (…) recomendou aos Apóstolos que anunciassem a todos o Evangelho prometido anteriormente pelos Profetas, que Ele mesmo cumpriu e anunciou pela Sua própria boca, como fonte de toda verdade salvífica e norma moral (Concílio de Trento), transmitindo-lhes os dons divinos. Essa recomendação foi fielmente cumprida pelos Apóstolos, que pelo ensinamento oral, pelos exemplos e pelas instituições transmitiram o que receberam da boca de Cristo, do Seu procedimento e dos Seus atos, ou o que aprenderam com o Espírito Santo, graças à Sua sugestão, bem como através daqueles Apóstolos e homens apostólicos que apoiavam pela inspiração esse Espírito Santo e consolidaram por escrito a nova da salvação” (DV 7). O Concílio aponta nitidamente para dois caminhos da transmissão do Evangelho, a palavra suprema da Revelação: a “escritural” e a “extra-escritural”, ou seja, a Tradição “oral” (oral – em relação aos Apóstolos; transmitida pelos escritos dos Padres da Igreja, dos concílios, etc. não deixa de ser “oral”). O pe. V. Granat introduziu na terminologia teológica polonesa o conceito de “transmissores” da Revelação: a Sagrada Escritura e a Tradição extra-escritural.

3. A Sagrada Escritura, como fala de Deus (locutio Dei), deve ser respeitada da mesma forma que a Tradição, a palavra de Deus (verbum Dei) apresentada por Cristo e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e através deles aos seus sucessores.

4. A Sagrada Escritura de ambos os Testamentos e a Tradição cumprem a função como que de um espelho (veluti speculum) no qual a Igreja peregrina contempla a Deus.

5. A Sagrada Escritura e a Tradição ligam-se e interpenetram-se mutuamente.

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