1. A Sagrada Escritura deve ser como a alma da teologia
2. A Sagrada Escritura é o livro da Igreja
3. O Antigo Testamento torna-se compreensível à luz do Novo, e o Novo está inserido no Antigo
4. A norma para a interpretação da Sagrada Escritura é o Evangelho
5. É correto na Sagrada Escritura aquilo que Deus quis nela dizer para a nossa salvação
6. A Sagrada Escritura deve ser lida com o mesmo espírito com que foi escrita
7. Os diversos textos da Sagrada Escritura devem ser entendidos de acordo com o conjunto da doutrina bíblica
8. Na interpretação da Sagrada Escritura é preciso levar em conta o conjunto da fé
9. Apenas a Dagrada Escritura constitui a norma não normatizada da teologia
10. A Sagrada Escritura constitui o critério para distinguir e avaliar a Tradição
11. A Sagrada Escritura constitiu para o teólogo a fonte definitiva e mais próxima (fons remotus – fons proximus)
12. A leitura fundamentalista da Bíblia é errônea e muito prejudicial
A metodologia teológica elaborou no decorrer dos séculos uma série de normas que devem nortear o trabalho com a Palavra de Deus do teólogo-sistemático. O conjunto fornecido abaixo limita-se apenas a algumas normas, levando-se em conta o seu significado metodológico.
1. A SAGRADA ESCRITURA DEVE SER COMO A ALMA DA TEOLOGIA
A Sagrada Escritura possui uma posição absolutamente privilegiada entre todos os “lugares” teológicos. É sobretudo aos teólogos que se aplicam as fortes palavras de S. Jerônimo: “O desconhecimento da Sagrada Escritura é o desconhecimento de Cristo”8. A história fornece muitas provas para o fato de que o afastamento da teologia da Sagrada Escritura levava-a à decadência, e a volta à Sagrada Escritura dinamizava o seu desenvolvimento, servindo com isso à renovação da Igreja.
A Sagrada Escritura constitui a regra suprema da fé.
“É preciso, portanto, que todo o ensinamento da Igreja, da mesma forma que toda a religião cristã, se alimente e seja alimentada e guiada pela Sagrada Escritura”. CR 21.
“A santa teologia se baseia, como num sólido fundamento, na Palavra Divina escrita, conjuntamente com a santa Tradição. Nisso ela encontra o seu mais sólido fortalecimento e continuamente se renova (…). Seja, portanto, o estudo da Sagrada Escritura como a alma da santa teologia” (DV 24).
2. A SAGRADA ESCRITURA É O LIVRO DA IGREJA
Isso significa que deve ser interpretada segundo a entende a Igreja. A construção da teologia à luz “da palavra divina pura” (postulado da Reforma) demonstrou ser um ideal inatingível. Por isso Karl Barth, depois de Lutero o mais eminente teólogo protestante, entusiasta da “palavra divina pura”, finalmente deu ao seu manual de teologia o título Dogmática eclesiástica (Die kirchliche Dogmatik). As Igrejas criam uma espécie de ambiente interpretativo da Bíblia. Quem o menospreza e abandona, colocando mais alto as suas próprias interpretações, coloca-se fora da teologia da Igreja (caso típico de Hans Küng), e muitas vezes termina no sectarismo. “Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal” (2Pe 1, 20).
“Na pesquisa e na transmissão da doutrina eclesiástica deve sempre evidenciar-se a fidelidade diante da Função Magisterial da Igreja”. (João Paulo II, Const. apost. Sapientia christiana de 17 de maio de 1979, art. 70.)
“Os exegetas católicos e outros que praticam a santa teologia devem esforçar-se para com o seu esforço comum, sob a supervisão da santa Função Magisterial, aplicando os necessários recursos, pesquisar e expor as Escrituras divinas de tal forma que os mais numerosos servos da palavra de Deus possam fornecer com proveito ao povo de Deus o alimento dessas Escrituras (…)”(DV 33).
3. O ANTIGO TESTAMENTO TORNA-SE COMPREENSÍVEL À LUZ DO NOVO, E O NOVO ESTÁ INSERIDO NO ANTIGO
Esse princípio foi formulado por S. Agostinho: Vetus (Testamentum) in Novo patet, Novum (Testamentum) in Vetere latet (Quaestiones in Heptateuchum, 1.2, 73. PL 34, p. 623), e foi lembrado pelo Concílio Vaticano II (DV 16). Enfatiza-se aí o estrito vínculo interior que liga os dois Testamentos. O Antigo Testamento conduz ao Novo, anuncia-o e prepara-o (tema pedagógico predileto da Lei do Antigo Testamento dos Padres da Igreja). Após a vinda de Cristo compreendemos melhor os prenúncios dos profetas do que os compreenderam os próprios israelitas e os próprias profetas. O Novo Testamento, enraizado no Antigo, constitui o seu cumprimento, confirma-o e continua a história sagrada cujas etapas anteriores ele criou e desvendou. A obra salvífica de Deus não se iniciou pela anunciação a Maria, mas pela anunciação aos primeiros pais: “Porei ódio (…), ela te ferirá a cabeça” (Gn 3, 15). Ambos os Testamentos interpretados em conjunto revelam-na em toda a plenitude.
“Deus, agente da inspiração e autor de ambos os Testamentos, decidiu com inteligência que o Novo Testamento estivesse oculto no Antigo, e o Antigo encontrasse no Novo a sua explanação. Porque, embora Cristo tenha instituído a Nova Aliança no Seu sangue (cf. Lc 22, 20; 1Cor 11, 25), os livros do Antigo Testamento, aceitos em sua totalidade para a doutrina evangélica, no Novo Testamento adquirem e manifestam o seu sentido pleno (cf. Mt 5, 17; Lc 24, 27; Rm 16, 25-26; 2Cor 3, 14-16) e mutuamente iluminam e esclarecem o Novo Testamento” (DV 16).
4. A NORMA PARA A INTERPRETAÇÃO DA SAGRADA ESCRITURA É O EVANGELHO
Na busca da verdade da Sagrada Escritura é preciso começar pelo Evangelho e dar ao seu texto o máximo valor, visto que é ele que constitui o ápice e uma espécie de síntese de toda a Sagrada Escritura (summa Scripturae Evangelium). Se toda a Sagrada Escritura é a norma da teologia (norma theologiae Scriptura), o Evangelho consitui a norma da Sagrada Escritura (norma Scripturae Evangelium), e portanto a norma da norma ou a norma na norma da teologia (norma normae theologiae Evangelium), e no Evangelho os princípios mais importantes são a fé em Cristo e o amor.
O menosprezo desse princípio conduz à deformação da doutrina bíblica. É suficiente iniciar a leitura da Sagrada Escritura pelo Apocalipse e à sua luz interpretar alguns pontos do Antigo Testamento, por exemplo o Livro de Daniel, para deformar a doutrina do cristianismo sobre o futuro. O primado do Evangelho entre os outros livros bíblicos faz parte dos princípios básicos da hermenêutica bíblica e teológica.
5. É CORRETO NA SAGRADA ESCRITURA AQUILO QUE DEUS QUIS NELA DIZER PARA A NOSSA SALVAÇÃO
Isso não significa que as informações bíblicas do âmbito da história, geografia, astronomia, botânica, etc. não possam estar de acordo com a verdade. Algumas vezes a Bíblia espanta pela precisão de tais informações (cf. o livro de W. Keller E a Bíblia tinha razão, PAX, Varsóvia 1959), mas a ênfase disso pode induzir ao erro de relacionar a excepcional autoridade dos livros sagrados com esse tipo de ensinamentos. Por isso com justiça se repete o adágio de que a Sagrada Escritura não é um manual de biologia, história, etc. Nessas áreas com toda a certeza a Bíblia não é infalível. A infalibilidade da Sagrada Escritura assinala apenas aquilo que Deus quis dizer para a nossa salvação. Essa formulação foi aceita pelo Concílio Vaticano II. Mas o que Deus quis revelar para a nossa salvação deve ser estabelecido. Isso é feito pela Função Magisterial da Igreja, pelos teólogos e por toda a Tradição. Quanto mais algum relato bíblico se relaciona com a nossa salvação, tanto mais nitidamente é infalível; e quanto mais desce à periferia do “objeto” básico da revelação, tanto mais a sua infalibilidade torna-se problemática.
“Os livros bíblicos ensinam de forma segura, fielmente e sem erro a verdade que por vontade de Deus a Sagrada Escritura devia consolidar para a nossa salvação (…). E visto que Deus, na Sagrada Escritura, falava através de homens, à maneira humana, o comentarista da Sagrada Escritura, querendo conhecer o que Ele pretendia nos anunciar, deve investigar atentamente o que os hagiógrafos na realidade queriam expressar e o que Deus quis manifestar pelas suas palavras” (DV 11-12).
6. A SAGRADA ESCRITURA DEVE SER LIDA COM O MESMO ESPÍRITO COM QUE FOI ESCRITA
Deus falou aos homens à maneira humana. Portanto a Sagrada Escritura é um livro de Deus e um livro humano. O Deus revelador não eliminava a individualidade dos hagiógrafos. Recebemos uma Bíblia escrita numa determinada língua ou dialeto, estilo, forma literária, com visíveis vestígios de influências culturais das épocas em que os hagiógrafos escreviam. O leitor do nosso século deve fazer o contínuo esforço de se livrar da tentação de ler o texto bíblico segundo o espírito do seu próprio tempo. Se quer atingir a verdade salvífica, deve chegar até ela através do invólucro verbal enredado numa cultura dele tão distante. Não apenas pode, mas deve levar em conta os diversos estilos literários.
“Com o objetivo de buscar a intenção dos hagiógrafos, é preciso também distinguir os ‘gêneros literários’.
Porquanto a verdade é abordada e expresssa de forma inteiramente diversa em textos históricos de vários tipos: sejam proféticos, sejam poéticos ou de outro gênero literário.
Por isso o comentarista deve buscar o sentido que em determinadas circunstâncias, nas condições do seu tempo e da sua cultura o hagiógrafo quis expressar e realmente expressou com a ajuda dos gêneros literários que naquele tempo eram utilizados. Para obter a correta compreensão daquilo que o autor quis expressar por escrito, é preciso prestar a devida atenção àqueles costumes, formas naturais de pensar, falar e relatar aceitas nos tempos do hagiógrafo, bem como às formas que se costumava adotar naquela época no convívio mútuo das pessoas entre si.
(…) A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita (…)” (DV 12).
7. OS DIVERSOS TEXTOS DA SAGRADA ESCRITURA DEVEM SER ENTENDIDOS DE ACORDO COM O CONJUNTO DA DOUTRINA BÍBLICA
Trata-se nesse princípio de um protesto contra a retirada dos textos do seu contexto mais próximo e mais distante. Toda a Bíblia é constituída pelo contexto pleno dos diversos pronunciamentos. A não-abrangência do conjunto da mensagem bíblica e a operação com palavras ou frases dela desprendidas conduz muitas vezes a heresias e seitas (o grego hairesis significa escolha; o latino secta, de seco, secare, sectum, significa o que é recortado, retirado do todo, ferido). É suficiente retirar as palavras: “Se alguém vem a mim , e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs, sim, até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26) do seu amplo contexto do exemplo do próprio Cristo para se chegar ao absurdo e ao antievangelho. Erasmo de Roterdã, no seu Método de teologia9, apresentou outros exemplos drásticos do método “sectário”.
A argumentação com a Bíblia é portanto uma questão difícil, que exige um enorme preparo. Uma pessoa sem uma cultura bíblica geral e profunda pode tanto salvar-se como perder-se com a Sagrada Escritura.
Na atual etapa do desenvolvimento da teologia, uma só pessoa não tem condições de dominar todas as suas áreas. Por isso se postula uma estreita colaboração dos dogmáticos e moralistas com os biblistas, e dos pastoralistas com os dogmáticos, moralistas e biblicistas. Discute-se a técnica dessa cooperação.
Em algumas instituições de ensino teológico estão sendo empreen-didas tentativas de dois tipos:
1. Os sistemáticos e biblistas estabelecem em conjunto o objeto das exposições e realizam-no conjuntamente: primeiramente expõe o biblicista (e o patrólogo), a a seguir o sistemático ordena, aprofunda, acrescenta, apresenta as implicações filosóficas, teológicas e pastorais.
2.O sistemático prepara o texto para estudo, e o biblicista realiza a sua correção do ponto de vista da sua especialização.
8. NA INTERPRETAÇÃO DA SAGRADA ESCRITURA É PRECISO LEVAR EM CONTA O CONJUNTO DA FÉ
Não é suficiente levar em conta o amplo contexto bíblico, mas é preciso também considerar todo o contexto da fé. Se as teses do biblista não se harmonizam com o conjunto da fé e da doutrina da Igreja, pode-se fundadamente questionar a correção da sua exegese. Porquanto encontramo-nos diante de duas possibilidades: ou nós não compreendemos de forma apropriada a fé e a doutrina da Igreja, ou o exegeta cometeu algum erro. Na linguagem dos teólogos diz-se que na explanação da Bíblia é preciso levar em conta a chamada analogia da fé, ou seja, não introduzir contradições no conjunto das suas verdades.
“(…) com o objetivo de extrair o sentido correto, é preciso levar em conta com não menor atenção também o conteúdo e a unidade de toda a Bíblia, tendo em vista a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé” (DV 12).
9. APENAS A SAGRADA ESCRITURA CONSTITUI A NORMA NÃO NORMATIZADA DA TEOLOGIA
Cada fonte da teologia (loci theologici), exceto a Sagrada Escritura, possui acima de si alguma norma superior: a doutrina dos teólogos é normatizada pelos concílios, pelos sínodos, pela doutrina dos papas…; a doutrina dos sínodos locais está subordinada à doutrina dos sínodos universais, ou concílios; o ensino da liturgia permanece sob a proteção magistral de determinadas autoridades eclesiásticas, etc. Apenas e exclusivamente a Sagrada Escritura não possui acima de si uma norma superior que a normatize. É ela que normatiza a fé e a vida da Igreja, normatiza como instância máxima, que nada de superior pode normatizar. Portanto é uma norma normatizante não normatizada (norma normans non normata). Quando se enfatiza que na correta interpretação da Bíblia é preciso necessariamente levar em consideração a fé da Igreja, a doutrina dos Padres, a Função Magisterial, etc., isso não significa que o homem esteja situado acima da Sagrada Escritura. Tudo isso deve estar abaixo da Sagrada Escritura. É ela que avalia isso, e não é avaliada por isso. A sua função em relação aos Livros Inspirados continua sendo sempre uma função serviçal. Não determina o sentido bíblico, mas apenas ajuda a estabelecê-lo.
Escrevendo sobre esse assunto, Karl Rahner introduziu o conceito de “fonte material da fé” e apresentou a tese de que apenas e exclusivamente a Sagrada Escritura constitui justamente esse tipo de fonte, visto que apenas ela é a Tradição inspirada e “objetivização pura” da consciência da fé da primitiva Igreja apostólica.
Portanto não pode haver nenhum dogma proclamado pela Igreja que se baseie apenas na Tradição oral, sem que esteja enraizado na Sagrada Escritura.
Não se pode concordar também com a tese de que na Tradição oral da Igreja existem verdades reveladas não contidas na Sagrada Escritura, mas transmitidas exclusivamente a par dela. A consciência da fé, pelo menos nos dois primeiros séculos, não encerra nenhum conteúdo extrabíblico que fosse reconhecido como objeto de fé e que não estivesse na Bíblia. Por isso não se pode contrapor à Sagrada Escritura a Tradição como uma outra fonte de fé, paralela à Escritura. Não existem duas fontes materiais da fé colocadas lado a lado. É preciso combater as tentações de teologia fácil, que se contenta com a Tradição extrabíblica nos casos em que não é capaz de fundamentar algum dogma com a Sagrada Escritura. O dogma deve basear-se na Sagrada Escritura como em seu fundamento definitivo. Não se pode concordar com aqueles teólogos que julgam que é suficiente demonstrar a unanimidade atual, contemporânea da Igreja.
O Magistério da Igreja não é e não pode ser fonte de conteúdo da fé, visto que não recebe uma nova Revelação. Quanto ao conteúdo da fé, depende da Sagrada Escritura, da mesma forma que todo cristão.
10. A SAGRADA ESCRITURA CONSTITUI O CRITÉRIO PARA DISTINGUIR E AVALIAR A TRADIÇÃO
A Sagrada Escritura constitui o critério para distinguir a Tradição da fé das diversas tradições humanas. A tradição da fé vive mesclada com as diversas tradições humanas, puramente históricas. A tradição da fé, que conduz através dos séculos a palavra de Deus, não se apresenta em forma pura. O seu reconhecimento e a sua distinção das outras tradições (escritas com “t” minúsculo) exige um critério seguro, ou um árbitro infalível. A Sagrada Escritura, como norma normans non normata, cumpre essa função pelo menos no sentido negativo, isto é, tudo que não pode ser conciliado com a Sagrada Escritura não pode constituir Tradição da fé ou Tradição escrita com “T” maiúsculo.
11. A SAGRADA ESCRITURA CONSTITUI PARA O TEÓLOGO A FONTE DEFINITIVA E MAIS PRÓXIMA (FONS REMOTUS – FONS PROXIMUS)
O teólogo trata a Sagrada Escritura como a fonte definitiva, a que ele chega através de muitos intermediários (comentários bíblicos, comentários dos teólogos-sistemáticos, explanações catequéticas e homiléticas, exegese aceita no seu ambiente e na sua época, Função Magisterial da Igreja, etc.).Considera como algo inteiramente compreensível e fundamentado fazer uso desses instrumentos, que facilitam o contato com o difícil texto da Bíblia. O teólogo tem até a obrigação de levar em conta as conquistas já existentes, para não começar tudo ab ovo.
No entanto a experiência ensina que a plena confiança nos mencionados “intermediários” e “auxiliares” possui também o seu lado negativo: estreita a teologia, petrifica-a e priva-a do dinamismo criativo. É preciso reconhecer o direito dos teólogos ao contato direto com a Sagrada Escritura, e até a obrigação de buscá-la como que acima de todos os “intermediários”, inclusive a Função Magisterial da Igreja. Com efeito, a Sagrada Escritura, a fonte da teologia mais fundamental e definitiva, é ao mesmo tempo uma fonte direta e próxima (fons proximus, immediatus) do teólogo criativo. O teólogo que com ela convive diretamente descobre muitas vezes algo que não encontrou nos manuais, nem nas outras formas da transmissão cristã da fé e da teologia, percebe certos aspectos novos das verdades anunciadas, e algumas vezes constata a necessidade de corrigir os conceitos que funcionam na teologia. O encontro direto do teólogo com o Livro dos Livros conduz algumas vezes a uma crítica construtiva do Magistério da Igreja ou mesmo da doutrina comum do Magistério da Igreja universal, o que contribui para o abandono de certas formulações e práticas ou para a introdução de novas, mais acordes com o texto inspirado; contribui também para o desenvolvimento da teologia nas suas diversas áreas, o que podemos perceber com excepcional nitidez na mariologia e eclesiologia (o seu enriquecimento com a categoria de “Povo de Deus”, valorização do elemento carismático, etc.). O estudo crítico da Sagrada Escritura não apenas não exclui a sua piedosa leitura, mas a reclama como complemento indispensável.
“Portanto, é indispensável que todos os religiosos, especialmente os sacerdotes de Cristo e outros, que como diáconos e catequistas dedicam-se legitimamente ao serviço da palavra, graças à leitura perseverante ao estudo devotado se afeiçoem à Sagrada Escritura, para que nenhum deles se torne um ‘vão anunciador da palavra de Deus exteriormente, sem ser interiormente o seu ouvinte’ (S. Agostinho, Sermo 179, 1. PL 38, 996), quando deve partilhar com os fiéis a ele confiados as enormes riquezas da palavra de Deus, especialmente da ‘santa liturgia'” (DV 25).
12. A LEITURA FUNDAMENTALISTA DA BÍBLIA É ERRÔNEA E MUITO PREJUDICIAL
Os adeptos do fundamentalismo bíblico partem da premissa de que a Bíblia, como Palavra de Deus e privada de erro, deve ser interpretada literalmente em todos os detalhes; excluem o método histórico-crítico e outros métodos científicos de compreensão da Sagrada Escritura.
Esse tipo de postura surgiu nos tempos da Reforma. No período do Iluminismo foi um protesto contra a teologia liberal. O próprio nome “fundamentalismo” relaciona-se com o Congresso Bíblico americano (Niagara no estado de Nova Iorque, 1895), durante o qual foram formulados os cinco princípios do fundamentalismo. O primeiro deles proclamava o caráter absoluto da palavra da Bíblia, ou seja, que nenhuma palavra da Sagrada Escritura pode conter qualquer erro. Esse princípio rapidamente encontrou numerosos adeptos em outros continentes e em diversas comunidades, inclusive católicas, mas especialmente nas seitas.
Ele brota de um profundo respeito à Palavra de Deus, mas nas suas conseqüências destrói a mensagem bíblica e poda as raízes de toda a teologia e fé ortodoxa, visto que:
1. Ignora o caráter histórico (encarnativo) da Revelação (mistura a revelação final com a primitiva).
2. Não leva em conta a natureza da revelação e da inspiração (afinal Deus, ao transmitir a revelação, serve-se de homens e da imperfeita linguagem humana; o Espírito Santo não ditou aos autores inspirados palavra por palavra; a linguagem bíblica contém muitas expressões nitidamente condicionadas pela cultura; é preciso conhecê-la para compreender corretamente o texto…).
3. Aceitando a infalibilidade da Sagrada Escritura também naquilo que trata de detalhes históricos ou cosmológicos (por exemplo a respeito da construção do mundo), impossibilita o diálogo da fé com a ciência.
4. Ao assegurar que a Bíblia apresenta respostas prontas a toda pergunta, oferece ao homem uma falsa certeza, mistura a fé e a piedade com a ingenuidade, viola a própria essência da mensagem bíblica e conduz ao suicídio do maravilhoso dom divino que é o pensamento.
5. Destrói a Igreja, ao rejeitar a sua insubstituível função de servir à Palavra de Deus e com a Palavra de Deus. Afinal o Novo Testamento, antes de ser escrito, viveu na anunciação oral… Dentro da Igreja, sob a inspiração do Espírito Santo, foi redigido por escrito e dentro da comunidade da Igreja permanece sempre como a palavra viva que não se identifica com a letra e o texto. Podem ser destruídos todos os exemplares da Bíblia, e a Palavra de Deus continuará vivendo e salvando na Igreja e pela Igreja. A identificação com a letra e o texto, com o princípio exclusivo da compreensão a “pé de letra”, pode conduzir, e a experiência demonstra que realmente conduz, a absurdos e à negação da mensagem sobre o Deus rico em misericórdia, sobre Cristo Redentor do homem, sobre o Espírito Santo Vivificante ou sobre a esperança da salvação, que Deus não quer negar a ninguém. O cristianismo fundamentalista transforma-se numa ideologia antievangélica. (Para mais detalhes veja: Comissão Bíblica Pontifícia, A interpretação da Bíblia na Igreja, de 15 de abril de 1993, especialmente o parágrafo I F: A leitura fundamentalista.)