O tempo da Quaresma chegou. É um tempo propício, forte e de mudanças radicais interiores e também de comportamentos eclesiais e sociais mais idôneos com a lógica do Evangelho.
O imperativo inicial que é a chave de leitura de todo o itinerário de preparação à Pascoa, é a palavra que deu início ao ministério público de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15) ou de forma optativa: “Homem, lembra-te que tu és pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3, 19).
Palavras severas, peremptórias e que direcionam o caminho, seja ele pessoal como comunitário.
1. Convertei-vos. No contexto em que estamos vivendo e no qual a Igreja passa o convite, que é um imperativo, adquire uma força de urgência e gravidade sem par. Nunca passamos por um tempo conturbado e humilhante como agora. No meu não curto percurso de vida, não lembro um acúmulo de fato, escândalos tão sérios como nestes últimos tempos: cardeal reduzido a leigo, cardeal na cadeia, bispos destituídos, diocese em processo de fiscalizações graves, escândalos de pessoas consagradas pipocando em várias Igrejas particulares, povo desnorteado diante dos fatos veiculados pela imprensa e por aí vai. Isso para relembrar a nossa vida eclesial sem entrar em âmbitos políticos, culturais, éticos morais etc.
Convertei-vos! É possível continuar a se fazer de surdos e cegos, como se isso não seja verdade? É possível continuar a desencadear mecanismos de defesa, considerando tudo como complô contra a Igreja e desconhecendo a grave crise que estamos passando? É lógico e coerente defender mais a própria imagem e encobrir sistematicamente a realidade? A conversão exige respostas plausíveis, claras e, portanto, mudanças inequívocas seja no nível pessoal – ponto de partida para quaisquer mudanças – mas também eclesiais. Há mecanismos internos na Igreja que produzem desajustes e que nem sempre queremos ver e menos ainda enfrentar, a não ser de forma teórica. “Convertei-vos”!
2. A conversão se dá se seremos capazes de acreditar na Palavra que é sempre de vida eterna, de luz, de segurança. Hoje se tornou muito difícil a arte do discernimento no emaranhado de informações constantes que temos, engolidas não poucas vezes sem reflexão e sem referências seguras.
Deus não tem opiniões, mas sim palavras de vida eterna, portanto se entregar a Ele é fundamental para encontrar a si mesmos e o caminho da vida. No campo teórico concordamos com isso, mas na realidade a Palavra do Evangelho tem bem pouca força na vida real, prevalece o bom senso nos casos melhores, a opinião da maioria, as ideologias, mas é tirada a força intrínseca da Palavra, quando nos piores dos casos a própria Palavra é falsificada por interesses pessoais ou de grupo.
O “Credes no Evangelho” necessita de abertura de coração, espíritos desarmados e meditativos. Romano Guardini dizia que “a Palavra nasce do silêncio”, como carecemos disso! Como eu posso ouvir, entender, interiorizar o que Deus vai me dizendo se não tem espaço pelo silêncio. A Quaresma nos incentiva para isso.
3. A opção que a liturgia nos oferece no dia da imposição das cinzas é importante também para encaminhar a tempo forte e favorável da quaresma: “homem lembra-te que és pó…” Não esqueça tua finitude, tua precariedade existencial, tua provisoriedade, não esqueça que aqui não tem uma cidade permanente e douradora, deverás voltar ao pó. Que sentido tem cultivar atitudes de prepotência, de onipotência, de manipulação do outro, de orgulho pessoal e não poucas vezes de orgulho de grupo? Que sentido tem cair naqueles perigos que o Papa detecta na “Gaudete et exultate”, quando fala do gnosticismo e do pelagianismo atual (nn. 36-62)?
“Es pó”, és criatura não criador, és beneficiário da salvação não seu protagonista e fonte. Muito orgulho espiritual precisa ser derrubado para se converter de fato ao projeto de Deus, deixando-nos conduzir por Ele de forma inequívoca e desarmada. Não é fácil para o homem e a mulher de hoje – que se acham protagonistas únicos de suas vidas, quase que Deus fosse um a mais, um obstáculo para a própria liberdade e autonomia. – mudar de rumo, se converter, deixar espaço criativo à Palavra eterna do Deus vivo.
As provocações que o tempo quaresmal levantam em nossa caminhada são muitas e graves. A elas se unem os desafios levantados pela Campanha da Fraternidade sobre “Políticas publicas” que não deverão ser minimizados ou ignorados se quisermos dar corpo à nossa conversão que nunca é sem mudanças transformadoras e sociais. “A fé sem as obras é morta”, perde credibilidade e atração.
Boa Quaresma para todos nós, focando a mudança interior em primeiro lugar, sem esquecer as urgentes mudanças sócio-eclesiais, a entrega ao Evangelho e a consciência da nossa provisoriedade existencial.