13/12/2008
1. Dom João Wilk, hoje bispo da Diocese de Anápolis, que compreende 19 municípios e 43 paróquias, fale um pouco sobre a sua pessoa.
Nasci na região próxima da cidade de Varsóvia, na Polônia, há 57 anos, numa região de trabalhadores rurais. Meus pais eram pequenos proprietários e, na família, aprendi sobre a importância da fé e do valor do trabalho e a respeitar as mãos calejadas dos trabalhadores. Entrei para a Ordem dos Frades Franciscanos Conventuais e tive a alegria de estudar no convento fundado pelo grande santo do Século XX e apóstolo dos meios de comunicação social, São Maximiliano Kolbe. Depois do Seminário Menor, entrei para o noviciado, onde tive a oportunidade de conhecer a espiritualidade de São Francisco de Assis, o que logo me apaixonou e me mostrou que este seria o meu modo de viver e de trabalhar na Igreja. Quando conclui os estudos de filosofia, em Cracóvia, conheci o então Arcebispo daquela cidade, Dom Karol Wojtyla. O seminário franciscano, um dos mais antigos da Polônia que remonta ao Século XIII, se localizava nas proximidades da Cúria Arquidiocesana e muitas vezes pôde ver Dom Karol Wojtyla, recolhido no fundo da Basílica de São Francisco, rezando o seu breviário. ALgumas vezes ele vinha participar de eventos em nosso Seminário, presidia celebrações ou nos honrava com a sua presença nos eventos de inauguração do ano acadêmico. Em 1973, fui enviado para continuar os estudos em Roma, na Pontifícia Faculdade Teológica São Boaventura, “Seraphicum”, onde conclui o curso de teologia e me preparei para a ordenação sacerdotal. Tive a alegria de emitir os votos religiosos junto ao túmulo de São Francisco, em Assis, onde também fui ordenado sacerdote.
2. Como ocorreu sua vinda para o Brasil e para Anápolis?
Tudo começou ao final dos estudos em Roma. Aquele era um tempo muito bonito, tanto de estudos como de contato pastoral com as paróquias de Roma, onde fazíamos o estágio pastoral. Junto com meus diretores espirituais e com os amigos leigos e religiosas, discerni minha vocação missionária. Pedi aos superiores e me foi concedido poder unir-me aos missionários que estavam iniciando um trabalho aqui no Centro-Oeste, nominalmente com Frei Agostinho, fundador da missão e que depois se tornou o primeiro Bispo da Diocese de Luziânia – GO. Agora, depois de 30 anos, sou brasileiro naturalizado, há 10 anos fui nomeado Bispo para a Diocese de Formosa e, há quatro anos, Bispo da Diocese de Anápolis. No início a minha estadia no Brasil, vim a Anápolis algumas vezes. A primeira vez foi em 1978. Estava inserido na comunidade franciscana na iniciante Cidade Ocidental, no município de Luziânia. Aquela cidade e paróquia pertencia à Diocese de Anápolis. Era o tempo de transição de Dom Epaminondas para Dom Manoel Pestana Filho. Assisti a tomada de posse de Dom Pestana na a Catedral Bom Jesus. Foi o primeiro grande evento eclesial para um jovem missionário. Acompanhei os primeiros anos de pastoreio do Dom Pestana e recebi Dom Pestana na visita pastoral na recém-criada Paróquia de Santo Antônio na Cidade Ocidental. Depois, quando foi criada a Diocese de Luziânia, o contato diminuiu notavelmente. Em 1998 fui nomeado bispo de Formosa – GO e em 2004, o Santo Padre me transferiu Anápolis. Para mim foi uma grande surpresa, porque trabalhei apenas seis anos em Formosa, onde, graças a Deus, realizamos um bom trabalho, tanto na parte vocacional e pastoral, quanto na parte administrativa. Uma das coisas que me dá muita satisfação foi a grande reforma da Catedral de Formosa, o início da construção do Centro Pastoral “Casa Nazaré” e o florescimento das vocações sacerdotais.
3. Que realidade o senhor encontrou em Anápolis?
Aqui em Anápolis encontrei a realidade eclesial já amadurecida em diversos aspectos, embora diferente da de Formosa. Os primeiros contatos com as paróquias permitiram observar uma Igreja já encaminhada e percebi que os desafios e, consequentemente, as prioridades deveriam corresponder, de um lado, ao trabalho já em curso, para dar continuidade e, de outro lado, à realidade que como tal exigia uma presença e uma atenção maior da Igreja. Formulei espontaneamente as prioridades, tais como: Pastoral Vocacional, Pastoral Familiar, Juventude e Catequese. Depois, tendo a oportunidade de ler parte do relatório que Dom Manoel escreveu para a Santa Sé na ocasião da visita ao Santo Padre, chamada “Visita ad Limina”, percebi que eram as mesmas preocupações que o norteavam, acrescentando ainda a participação dos leigos. Num dos primeiros encontros com Dom Manoel ele me disse que o povo de Anápolis era bom e religioso. Por inúmeras vezes tive a oportunidade de confirmar essa impressão, inclusive ouvi de outras pessoas a mesma opinião e não só em relação aos católicos. Uma pessoa me disse que em Anápolis quem é católico é católico religioso, quem é evangélico é evangélico religioso, quem é espírita é espírita religioso. Acredito que um pouco da índole, da composição do tecido social do povo de Anápolis e região, contribui para isso. O nosso povo tem uma presença marcante dos descendentes mineiros que nas épocas passadas vieram em grande número estabelecer-se nesta região. Vieram também os imigrantes que também são povos religiosos. O trabalho de criação da Diocese, há pouco mais de 40 anos, também permitiu uma atenção e um engajamento pastoral muito positivo. O esforço de Dom Epaminondas foi o de envolver as forças vivas da jovem Diocese no trabalho pastoral de evangelização. Em seguida, o trabalho de Dom Pestana, de maneira diferente, mas com a mesma preocupação, também foi fundamental. Hoje, temos essa Igreja participativa, muitos leigos engajados no trabalho de Catequese, Ministros Extraordinários de Comunhão, Movimentos e Pastorais, temos Cursilho, Encontro de Casais com Cristo, Equipes de Nossa Senhora, Encontro Conjugal, Movimento dos Focolares, Pastoral Familiar, Vicentinos, Apostolado da Oração, Legião de Maria. Temos a grande presença das Congregações Religiosas masculinas e femininas, de modo especial os quatro grupos dos Franciscanos e a Ordem dos Cônegos Regulares. Esses trabalhos se somam e complementam, de modo que podemos trabalhar para criar uma pastoral orgânica, de conjunto. Percebemos e experimentamos alguns contrastes e divergências, que às vezes causam certa perplexidade, mas é preciso analisar isso também do ponto de vista da correta comunhão com a Igreja que é aberta a diversas expressões e sensibilidades de espiritualidade. Cabe aos legítimos pastores discernir os carismas autênticos, acolher os que de fato apresentam sinais positivos da presença do Espírito Santo e corrigir o que se fizer necessário.
4. Existe uma convivência harmônica entre os seguidores das diversas religiões que caracterizam Anápolis como uma cidade de profunda religiosidade?
A convivência respeitosa é o fundamento de uma convivência civilizada. Os Papas, como João Paulo II e agora Bento XVI, em suas viagens apostólicas têm como marca os encontros inter-religiosos e de diálogo ecumênico ou os chamados encontros com os construtores da sociedade pluralista. A Igreja, na linha do Concílio Vaticano II, quer ser aberta à sociedade para poder contribuir para a paz e a justiça. O diálogo ecumênico e inter-religioso é um fator de fortíssima expressão na construção da paz. Em Anápolis temos seguimentos religiosos muito acentuados e, às vezes, surgem focos de certa polêmica. Do ponto de vista do tecido social, é preciso que as religiões colaborem com as autoridades constituídas e com outras forças da sociedade e que, entre si, sejam muito atentas e vigilantes para um respeito mútuo, para a busca daquilo que une e, sobretudo, para uma valorização daquilo que é verdadeiro, evitando polêmicas, agressões, inverdades. Acredito que Anápolis consegue manter um justo equilíbrio. Ficamos sentidos com algumas expressões que agridem as nossas tradições católicas, mas, felizmente, não passam de fatos isolados.
5. A participação da Igreja na vida social, inclusive na política, deve acontecer ou precisa ser de forma bem equilibrada e regrada?
A Igreja se coloca no mundo e na sociedade como “mãe e mestra”. Em minhas visitas pastorais, nos encontros com autoridades, prefeitos e vereadores, por exemplo, costumo citar uma passagem bíblica dos Atos dos Apóstolos, na qual os Apóstolos depois da ressurreição do Senhor Jesus vão ao templo para rezar e encontram um mendigo que lhes pede ajuda. São Pedro, naquele momento, diz a ele: “Ouro e prata não tenho, mas o que tenho te dou. Em nome de Jesus Cristo levanta-te e anda”. Essa expressão eu vejo como um paradigma, um ponto de referência da posição da Igreja no mundo social. “Ouro e prata não tenho”, significa que a missão da Igreja não é material. A missão da Igreja não tem o objetivo de solucionar problemas de infraestrutura, de organização, ou seja, de tutelar o exercício de administração e de governo. A missão da Igreja é de ordem espiritual, portanto, “o que eu tenho te dou: levanta-te e anda”, em nome de Jesus Cristo. A missão da Igreja é em nome de Jesus Cristo, a partir da visão que Jesus teve da pessoa humana, das relações interpessoais, da convivência social. A visão dos valores: “Levanta-te e anda”. A partir deste paradigma é próprio dizer que a Igreja se coloca no mundo como “mãe e mestra”. Assim como a missão de Jesus é universal e a proposta da salvação é para todos, a Igreja sente que sua missão é para toda a humanidade e, a partir de Jesus Cristo, a Igreja se sente autorizada a exercer o papel de mestra, lembrando os valores, salvaguardando, promovendo e lutando por esses valores. Por exemplo, a atuação da Igreja em nível internacional, a participação dos observadores da Santa Sé na sede da ONU, os pronunciamentos do Santo Padre nos encontros com chefes de Estado, isto só para falar em termos gerais. Transpondo tudo isso para o terreno do Brasil e da Diocese de Anápolis seguimos, na medida do possível, a Doutrina Social da Igreja, que é muito ampla e muito profunda, mas infelizmente ainda pouco conhecida. Seguimos também as posições da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que tem a visão de participação e de leitura crítica dos fenômenos e acontecimentos, sem ligar-se diretamente a nenhuma ideologia, partido ou governo. A liberdade que a Igreja tem para se posicionar é muito preciosa e beneficia todo o nosso povo. A presença da Igreja Católica no campo social se manifesta também pelas obras sociais e de assistência. No Brasil, basta lembrar o número enorme das escolas em todos os níveis, das universidades, creches, hospitais, abrigos, casas de recuperação, campanhas. Pensemos na Campanha da Fraternidade, que há mais de 40 anos está contribuindo para a mudança profunda da mentalidade de nosso povo em torno dos problemas que interessam à Nação. Os meios de comunicação também contribuem diretamente com a promoção humana, a formação da cidadania e o amadurecimento da democracia. A educação para a democracia e as campanhas de promoção dos projetos de iniciativa popular também ajudam a criar uma maturidade maior no exercício da política, tanto da classe política, quanto do nosso povo em geral. O que se diz da Igreja que se faz presente no mundo inteiro e da Igreja no Brasil, tentamos aplicar às situações concretas locais. Também podemos afirmar que a Igreja participa da construção de uma sociedade ao participar do processo político, mas deve estar sempre atenta a princípios e critérios que possam orientar essa prática e não em termos de critérios partidários. Os católicos, como parte da sociedade, participam de diversos partidos e devem ser engajados politicamente. É o papel dos leigos. Quanto aos bispos e aos padres, o Direito Canônico recomenda claramente que o papel deles não é o de participar de uma luta política partidária, mas orientar e preparar os leigos para uma consciência política de engajamento no sentido de uma transformação da sociedade. Nosso objetivo, portanto, é preparar os leigos para uma liderança e participação na política e na administração pública.
6. O gesto de solidariedade tem sido muito exercitado devido às catástrofes. Diante da influência dos avanços tecnológicos, do aumento dos índices de violência a solidariedade não deveria ser exercitada num sentido mais abrangente?
O que é bom nunca é suficiente. Vivemos numa sociedade marcada pelos contrastes e o evento das enchentes em Santa Catarina, p. ex., demonstrou que a alma do povo brasileiro é muito sensível, é muito boa. Foram numerosos apelos para a sociedade e a resposta foi imediata, foi muito boa. Nosso povo é bom e isso é demonstrado nos momentos críticos. Curiosamente, ao mesmo tempo, experimentamos gritantes contrastes como o rápido aumento da violência, por exemplo. A crueldade também aumenta de forma assustadora e tudo isso é indicativo de uma grande perda dos valores, da dignidade da pessoa humana, do bom senso. É a banalização da pessoa e da vida humana. A mesma coisa ocorre no que diz respeito à cultura da vida; um contraste enorme: de um lado, sinais de uma sensibilidade que diante das tragédias suscita a compaixão e, de outro, a banalização de vidas nos acidentes de trânsito ou na forma como alguns setores da sociedade buscam a legalização do aborto. A destruição dos valores da família é outro ponto preocupante. Em Anápolis e região, vivemos o fenômeno da migração para a Europa. Não quero me pronunciar sobre o desejo legítimo de as famílias melhorarem de vida, mas falo da destruição da família e da situação das crianças que vivem e crescem sem carinho dos pais, pois esses trabalham fora do Brasil. Esta situação deixa marcas de carência profundas na psicologia das crianças. Por isso, esses momentos de solidariedade deveriam nos levar mais além, a refletir sobre qual é a base e qual é a necessidade da solidariedade. A Igreja Católica, nas diretrizes de sua ação evangelizadora, colocou três pilares: resgatar a dignidade da pessoa humana, construir a comunidade e participar da construção de uma sociedade justa e solidária. O primeiro ponto é resgatar a dignidade da pessoa humana e, nesse sentido, todos os segmentos da sociedade, inclusive os governos, deveriam tomar consciência de que é começando do início é que conseguiremos melhorar as condições e a qualidade de vida do nosso povo, sendo que o coletivo é reflexo do individual e a soma dos indivíduos. Se os indivíduos não têm noção de sua própria dignidade e da dignidade do próximo, a sociedade nunca será respeitosa, nem solidária. Por isso, vivemos os contrastes: sinais evidentes de bondade do nosso povo e, de outro lado, sinais de banalização da pessoa humana. Temos excelentes leis, inclusive no trânsito, que só funcionam nos primeiros meses. Depois, tudo se banaliza. Em Anápolis e região, por exemplo, o índice de acidentes é altíssimo…
7. A Campanha da Fraternidade desempenha um importante papel quando se fala em solidariedade…
A Campanha da Fraternidade, nos seus 40 anos de existência, apontou para feridas de nossa sociedade e indicou os remédios. Ela representa um marco muito forte na elevação da mentalidade e do comportamento social. No aspecto das enchentes em Santa Catarina, p. ex., dois fatores chamam a atenção: as condições climáticas que fogem ao nosso controle e a irresponsabilidade do comportamento do ser humano que agride a natureza e depois recebe a resposta disso. Quem desmata, quem destrói, deveria ser solidário com os próprios filhos e netos, com o futuro, deixando de praticar esse tipo de agressão contra a floresta, contra os rios, contra o cerrado. Deveria prevenir e não destruir. A solidariedade precisa ter também o nome da cultura de convivência com o ser humano e com a natureza. Acredito que esse momento de solidariedade com nossos irmãos de Santa Catarina deve nos levar a uma reflexão de que realmente a solidariedade na prevenção é tão importante, ou mais, quanto levar alimentos e água às vítimas das enchentes. As últimas Campanhas da Fraternidade foram canalizadas para a questão ecológica: a preservação da Amazônia, do cerrado, das nascentes e cursos d’água, à valorização das belezas naturais da nossa região, como as cachoeiras e paisagens naturais e históricas de Pirenópolis, Corumbá e Chapada dos Veadeiros. A Igreja considera a preservação da natureza como preservação da criação. O respeito pela natureza se inspira na nossa fé. Não consideramos importante preservar a natureza para poder explorar mais, mas porque a natureza é obra que Deus fez e a deixou como lar para o ser humano. É no equilíbrio da natureza que está o bem-estar dos seres humanos.
8. Qual é a sua palavra de otimismo e fé para os nossos leitores neste final de mais um ano?
Continuemos acreditando no bem e não nos deixemos amedrontar pelo mal. Presenciamos sinais do mal no meio de nós e, muitas vezes, nos assustamos com isso e deixamos de praticar o bem. Devemos ser homens e mulheres vigilantes. Quanto mais experimentarmos o mal em nós ou em torno de nós, devemos perceber que a balança deve pender para o outro lado. O bem deve ter mais força e mais argumentos em nossa sociedade.
Gostaria também de destacar a importância dos valores religiosos e espirituais para a felicidade da pessoa humana. Sou religioso e o meu trabalho é promover os valores religiosos. A religião não é algo supérfluo ou facultativo da pessoa humana; ela faz parte do estatuto existencial de cada um de nós. Jesus disse: “Sem mim, nada podeis fazer”. Portanto, o temor de Deus, a confiança no amor de Deus e o desejo de ser perfeito como o Pai Celeste é perfeito, devem ser pontos de referência e de inspiração para todos os indivíduos e para toda a sociedade de Anápolis. É o que desejo para 2009 e para o futuro.
+ João Wilk, OFMConv.